sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Mãe tenho saudades tuas (1994)

Sonhava com o dia em que, finalmente, sairia de casa. Casada, porque a tradição era ainda apertada e naquele tempo “viver junto” era coisa de galdéria. Sonhava com o dia da liberdade, que não me era permitida, pelo menos, não na forma como a entendia: sair quando quisesse, dormir fora, passar férias com os amigos. Sentia-me tolhida. E tudo por culpa dela. Insistia teimosamente em manter a rédea do cordão umbilical que me cortaram à nascença. Insistia em ver-me irresponsável, indefesa, insegura, criança. E eu já adolescente. Já com ganas de independência. E quando tentava pôr-me em bicos dos pés, rebaixava-me a pose: “Que rebelde me saíste. A filha da dona Laurinda é que é uma boa filha. Tem dezoitos a tudo, passa os dias a estudar e a ajudar a mãe. Aquela faz-se senhora”. Que raiva da tipa, da filha da tal Laurinda, que ainda por cima – a disfarçada - só era a mais concorrida na escola e – dizia-se - era daquelas que deixava fazer tudo... menos aquilo! Mas estava proibida de argumentar. Eu ainda arriscava: “que sabe a mãe dessa rapariga? Conhece-a como eu para saber isso tudo?” Mas aí o meu pai interferia e calava-me o discurso. Bastava-lhe um olhar para que eu encerrasse a defesa. Mas ela continuava: “eu até sei que ontem faltaste a matemática e que te viram a fumar...” Horas a fio a sacar-me a paciência, a moer-me os serões. E as meninas exemplares voltavam: “E aquela Carla, que menina educada. Nunca se ouve responder torto à mãe. Faz tudo o que lhe dizem. Olha que tem a tua idade e já cozinha como gente grande”. Tinha 17 anos e sabia estrelar um ovo, grande coisa!
O que eu sonhava com o dia em que, finalmente, sairia de casa. Às vezes gritava-lhe: “Quando viver longe de ti não quero fogão. Só como sandes!” e batia com a porta. Asneira! Sabia, qual reflexo condicionado, que segundos depois entraria pelo quarto furiosa: “Quantas vezes te disse que não podes bater com as portas?” E zás, lá vinha a bofetada do exemplo da filha de não-sei-quem, “que nunca, mas nunca se atreveria a bater com as portas. Nem fuma, nem falta às aulas... nem tem namorado”. O meu – aquele que me haveria de dar a carta de alforria – entrava lá em casa com ordem. A minha mãe justificava: “Prefiro que venha namorar-te aqui a casa que andem lá fora a fazer sabe Deus o quê...” E eram sábados e domingos de pijama, frente à televisão ou a jogar Trivial de cor. Ele, paciente, fingia compreender os limites impostos. Sonhávamos como dia em que, finalmente, sairíamos de casa. De vez em quando... um beijo. Ela nem ligava. Se fosse na rua, em público, é que caía o Carmo e a Trindade.
Finalmente, com 24 anos, saí de casa. Casada, que “viver junto” era ainda coisa de galdéria. Ai mãe!, passaram 10 anos e se soubesses as saudades que tenho dos teus sermões, as saudades que sinto da filha da dona Laurinda e de todas as fulanas e beltranas, dos dezoitos e com jeito para a lida da casa, que me atiravas à cara. Hoje percebo que elas eram as tuas armas para me ensinares a tornar-me na filha que agora juras ser a melhor de todas.
Hoje sonho com o dia em que voltaremos a viver na mesma casa. Para que voltes a cuidar de mim, me aconchegues os filhos e me permitas, de vez em quando, o reparo: “que teimosa me saíste. Quantas vezes te disse que os remédios são para tomar até ao fim. Olha que a dona Laurinda não precisa que a filha ande sempre de olho nela...”