terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Princípio de Dezembro. Com a chegada do frio começa a pairar no ar aquilo que é vulgar designar-se espírito natalício. E o que é o espírito natalício? Acredito que se trata de um conjunto de atitudes que aparecem depois de todos terem tomado uma poção mágica que os transforma repentinamente em "pessoas boazinhas". Se faz parte dos que emborcaram a mistela, então este artigo não tem nada a ver consigo. Destina-se àqueles que, por volta do dia 20, já não suportam tanta lamechice.

É, de facto, no princípio do último mês do ano que tudo e todos se transformam. As músicas das "chamadas em espera" passam do insistente Jean Michelle Jarre para o já gasto "É Natal, é Natal" ou para o Coro de Santo Amaro de Oeiras a cantar ao Menino. Ligue para onde ligar e não encontra originalidade. E o mais irritante é que as melodias entram no ouvido de tal maneira que acabamos por passar o dia a trautear disparates. Experimente entrar de rompante no gabinete do chefe. Com toda a certeza estará a cantarolar qualquer coisa do género. Não se espante. O efeito é contagioso e ainda não foi descoberto o antídoto para o veneno. Apesar de tudo, o caso ainda não é bicudo. Pior será no dia que chegar ao emprego e encontrar o chefe a distribuir gorros de Pai Natal que comprou aos magotes a um vendedor ambulante. Resistir ou recusar enfiar o barrete é uma atitude insensata que pode custar o emprego. Passa a ser olhado de lado e é excluído da lista de prendas. E por falar em lista, esta é uma prática que para os "Natalofóbicos" não faz o menor sentido. É-lhes sugerido que comprem uma "lembrançazinha" — até 5 euros, que o chefe não quer motivos para pedidos de aumento — e que depois será sorteada. Está-se mesmo a ver que vai direitinha para colega que mais abomina.
E se pensa refugiar-se em casa para se proteger do suplício, prepare-se. Experimente ligar a televisão. Primeiro é inundado por milhares de anúncios que convidam ao consumismo. Da boneca que faz bolhinhas, ao perfume xpto, passando por uma panóplia de produtos que ninguém percebe para o que servem, encontra tudo, para todos os gostos e todas as carteiras.
Agora, algo verdadeiramente terrível: a grelha de programas. Uma infindável lista de séries de televisão que já têm barbas compridas. Quantas vezes já viu o "Sozinho em Casa", "Música no Coração" a saga da gala Popota, a "Contos de Natal", o "Bambi" e o "Pinóquio"? Vai uma apostinha que este ano não vai ser diferente?
Repentinamente, parece que toda a gente se lembrou da "caridadezinha". Chovem debates sobre desalojados, doentes, velhos solitários, enfim, de todos aqueles que durante o ano são completamente esquecidos. Nos meses em que esta febre não ataca é provável que ninguém se lembre de dar esmola ao mais miserável dos pedintes. Alguns são olhados com repulsa e até vergonha. Mas no Natal todos lembram estas pobres almas e ninguém recusa ajudar. De tal maneira que as igrejas são inundadas de roupas, brinquedos e mercearias. Alguém consegue explicar o fenómeno? Parece que toda a gente entra num período de transe hipnótico. Pena ser só nesta época.
E se pensa que esqueço o "Natal dos Hospitais" está completamente equivocado. Quem pode ignorar a festa dos doentes que dura um dia inteirinho. Uma feira de artistas em play back que se juntam por uma causa envergando lantejoulas e penteados de fazer inveja à Maria de Belém. Figuras como António Calvário, Artur Garcia, Natalina José, Argentina Santos, Marco Paulo, pequeno Saúl, Ana Malhoa, que mais dia menos dia formará o trio "José Malhoa, filha & Neta", a vaca e o boi Réré, o Topo Gigio e o amigo Baião e tantos (demasiados) outros que fazem as delícias da audiência: pessoas que não estão no seu estado de saúde normal. Muitas horas de uma espécie de Made in Portugal, apresentado por locutores saídos dos baús da RTP e que falam com dicção anazalada a fazer lembrar as sessões radiofónicas dos anos 50.
Se depois de tudo isto ainda continua fã do Natal, merece um Oscar.

As ruas estão repletas de luz. Milhares de lâmpadas acesas, enleadas em motivos de Natal que quase obrigam a colocar os óculos de Sol às 10 das noite.
As lojas abarrotam de gente numa azáfama de compras em que todos se atropelam, mexem e remechem, obrigam os lojistas a espalhar tudo nos balcões para, depois de muita indecisão, optarem por um mísero alfinete de gravata. E os multibancos? É sempre nestas alturas que decidem empancar. Horas e horas à espera para pagar uma conta de 5 mil reis enquanto a menina da loja lhe sorri de uma forma que apetece pegar numa borracha e apagar-lhe os lábios. Afinal está a rir-se de quê? Então não é nesta altura que o patrão lhe exige 10 horas seguidas de trabalho? Não é agora que vê a hora de almoço esfumar-se e que mal chega para dar uma dentada na sandes de panado? Chegámos à conclusão que deve existir um autocolante em forma de sorriso que se cola no Natal e só se tira a 2 de Janeiro.

As cidades enchem-se de carros. Ainda mais carros. O trânsito entope e caminhos que antes se faziam em 10 minutos levam agora horas a percorrer. Mas de onde saiu tanto automóvel? É a mania das compras que, invariavelmente, se deixam para a última hora. Ir a pé ou de Metro não passa pela cabeça de ninguém. Esta é a altura em que até o cidadão mais carenciado se permite um luxuzinho. Então toca a tirar o carro da garagem e ala, às compras!
Os que não têm carro, passam a ter. É que os concessionários escancaram as portas e facilitam o crédito de tal maneira que até os que ainda não tiraram a carta dificilmente conseguem resistir. Com certeza que já viu anúncios que lhe dão hipótese de ter carro por meia dúzia de contos por mês. Epá, não é mesmo irresistível? Um popó novinho em folha por tuta-e-meia. O pior são as letras miúdinhas que passam a correr em rodapé. Tão rápidas que ninguém consegue perceber a ratoeira que representam. Normalmente o pobre desconfia da fartura. Mas quem ousa enganar alguém no Natal?

Outra coisa que faz grande confusão aos que não gostam do Natal é a razão que leva as pessoas a oferecerem prendas umas à outras. Alguém consegue explicar o que é o nascimento do Menino Jesus tem a ver com a mania dos presentes? Afinal quem faz anos é Ele. As prendas deveriam ser para Ele. Mas como ele já não existe (pelo menos em carne e osso e para muitos nem em espírito) toda esta infernal troca de bens parece absurda. Um rol de nomes que vai dos avós aos tios, passado pelos primos que, cá para nós, não são primos coisa nenhuma. Aparecem nesta altura só para nos fazer gastar dinheiro. Que lógica tem dar um presente a alguém que não vimos há mais de 5 anos? Ou oferecer um pinchavelho qualquer ao vizinho que durante o resto do ano nos inferniza os neurónios com queixas por mera inveja? Nenhuma lógica!
E o tempo que se perde a enviar postais da UNICEF (pelo menos isso!) a todos os nomes que constam na nossa lista telefónica. Para cima de 100 votos sinceros de um Natal Feliz e um Próspero Ano Novo a pessoas que mal conhecemos mas que ocupam posições que podem vir a ser-nos úteis. A isto chama-se oportunismo que conjuga mal com o espírito da época.

E a figura do Pai Natal? Quem é o Pai Natal? O maior fabricante de desejos consumistas. Todos os anos, um personagem simpático e bonacheirão vem do Polo Norte, montado num trenó puxado por renas — que voam —, desce pelas chaminés onde deposita presentes para os meninos bem comportados.
Para já, parece incongruente fazer crer às criancinhas que um senhor tão gordo possa caber numa chaminé. Depois explicar aos miúdos que as renas do Pai Natal são as únicas no mundo que voam é outra tarefa complicada e que só serve para rotular os pais de mentirosos no dia que as virem pregadas ao chão do Jardim Zoológico. Para não falar dos traumas que podem causar quando a realidade lhes provar que nada disto é verdade. Se os pedagogos insistem em afirmar que não se deve mentir às crianças, por que razão ainda se insiste no Pai Natal? Por que sugerem aos putos que escrevam longas cartas com os pedidos mais incríveis para depois se enfiarem com eles num hipermercado e serem confrontados com a pergunta mais ingénua: "Ó mãe, porque é que estás a comprar os presentes todos que eu pedi ao Pai Natal?". Francamente!

Natal sem o bendito pinheirinho não é Natal. Um viçoso e verdinho pinheiro que há que arranjar a qualquer preço. Durante anos, a luta dos ecologistas, que protestavam contra os verdadeiros assaltos às matas nesta altura do ano, denunciou a barbaridade do acto. "Que horror, é um crime", pensaram os "Natalodependentes". E a imaginação humana, que vai para lá de tudo o que é razoável, encarregou-se de inventar os pinheiros artificiais. Uma espécie de piaçaba gigante que se monta e desmonta todos os anos, atafulha-se com penduricalhos às cores e não larga a irritante caruma. O efeito não é o mesmo mas quem liga a essas coisas? O que interessa é a intenção.
Por debaixo da árvore de Natal, o indispensável Presépio, o mais completo possível. O Menino Jesus, S. José, a Virgem Maria, os Reis Magos e um vastíssimo séquito de "bajuladores". Os pastores, as cabras e as ovelhas, o aguadeiro, o carpinteiro e a lavadeira... enfim um conjunto de objectos que, em alguns casos, já inclui carrinhos de plástico e outras modernices. Horas e horas de trabalho a montar, a decorar, para no dia 7 de Janeiro voltar tudo para dentro da caixinha.

Falta mencionar o pior dos infernos: o jantar de Natal.
Tudo começa dias antes: a escolha do peru mais gordo, os quilos e quilos de bacalhau para a ceia — outro hábito que ninguém consegue explicar com lógica —, as filhoses, o bolo-rei e outras tantas iguarias tradicionais. Uma trabalheira, isso sim. Tudo para dar de comer a uns quantos tios, mais uma mão cheia de primos e respectivas namoradas que no final do jantar se despedem ignorando a pilha de loiça que deixaram por lavar. Não é de morrer de raiva?
Reencontrar as tias velhas que não vemos vai para uma década e levar com comentários do tipo: "estás mais gorda", "quando é que casas, olha que ficas para tia" ou, "o novo marido da Maria é muito mais antipático que o primeiro. O que é que ela viu nele?". Muito desagradável. Tudo a juntar ao cheiro de naftalina que se espalha pela casa. Culpa dos casacos de "vison" que só têm ordem de soltura nesta altura do ano. Um aroma tão intenso que já ninguém consegue distinguir se é da roupa ou da idade. Depois é fazer conversa mole, falar dos que já não estão presentes, do caracter altruísta do tio-avô, da excelente pessoa que era a bisavó — mesmo que tenha sido um alívio o seu desaparecimento —, os queixumes acerca da perversão da juventude, a saudade dos tempos que já passaram. Tantas balelas que às tantas o seu cérebro desliga.
À meia noite o farfalhar de papéis de embrulho que se rasgam na ânsia de encontrar algo diferente dos outros anos. Vã esperança: mais uma camisola de lã, cujas mangas não passam dos cotovelos, mais umas pantufinhas de croché, cheia de malhas falhadas e que não apertam nos tornozelos, oferecidas pela tia Francisca, já pitosga mas só para o que ela quer.
Uma noite terrível, de excessos. Da comida à pinga, passando pela língua afiada, acabando nos amuos do Joãozinho que não percebe a razão por que o Pai Natal não lhe deixou um irmãozinho no meio dos presentes. E alguém tem coragem de lhe explicar porquê?

Se tudo isto lhe parece completamente impossível de suportar, fuja! Já pensou que o mês de Agosto pode não ser o mais adequado para tirar férias? Hotéis esgotados, um calor de morte, gente por todo o lado. A solução é simples. Reserve Dezembro para descansar. Um mês inteirinho só para si, algures numa ilha paradisíaca, sentado à beira mar, deliciando-se com um magnífico cocktail. Fuja! E tenha um santo Natal.